19.6.22

Um apólogo - Machado de Assis

   

"O apólogo é um texto narrativo dramático de curto tamanho que apresenta histórias fantásticas, vividas por personagens inanimados (elementos sem vida na realidade), com intuito de apresentar uma “lição de moral” ou uma “conduta de comportamento”."








Machado de Assis

 

UM APÓLOGO

 

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

- Deixe-me, senhora.

- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

- Mas você é orgulhosa.

- Decerto que sou.

- Mas por quê?

- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

- Também os batedores vão adiante do imperador.

- Você é imperador?

- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

- Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

 



Machado de Assis



Machado de Assis (1839-1908) é um dos maiores representantes da literatura brasileira.

O grande escritor foi o responsável por inaugurar o Realismo, que teve como marco inicial a obra "Memórias Póstumas de Brás Cubas", publicada em 1881.

Machado deixou um conjunto vasto de obras. Foi contista, cronista, jornalista, poeta e teatrólogo, além do que é o fundador da cadeira n.º 23 da Academia Brasileira de Letras.
Biografia de Machado de Assis

Machado de Assis, cujo nome completo é Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu no morro do Livramento, Rio de Janeiro, no dia 21 de junho de 1839.

Filho de pais humildes, seu pai, Francisco José de Assis, era pintor de paredes e sua mãe, a açoriana Maria Leopoldina Machado de Assis, era lavadeira. Machado ficou órfão de mãe muito cedo e, por isso foi criado com sua madrasta.

Em 1851 seu pai também morreu. Sem recursos para estudar, era autodidata, e com apenas 14 anos publicou o soneto "À Ilma. Sra. D.P.J.A.", no Periódico dos Pobres, de 3 de outubro de 1854. Em 1855 seu poema "Ela" é publicado na revista Marmota Fluminenses.

Fascinado por livraria e tipografia, em 1856 tornou-se aprendiz de tipógrafo na tipografia Nacional. Dois anos depois, em 1858, já era revisor no Correio Mercantil e, em 1860, redator do Diário do Rio de Janeiro, cargo que aceitou a convite de Quintino Bocaiuva.


Machado escrevia para a revista O Espelho, a Semana Ilustrada e o Jornal das Famílias. O primeiro livro que publicou foi a tradução de Queda que as mulheres têm para os tolos. Em 1864, com 25 anos, publicou o seu primeiro livro de poesias, Crisálidas.

Foi censor teatral, em 1862, e em 1867, foi promovido a ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial.

Em 1869, casou-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, senhora portuguesa que lhe ajudou na revisão dos livros e com quem esteve casado durante 35 anos.

Em 1872, publicou Ressurreição, o seu primeiro romance. Em 1873, torna-se primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

Continuou escrevendo em jornais e revistas. Seus escritos eram publicados em folhetins, de seguida tornando-se livros. Foi o que aconteceu com uma de suas obras-primas, Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em livro 1881.

Entre 1881 e 1897, publicou crônicas na Gazeta de Notícias.

Com outros intelectuais, fundou, em 1896, a Academia Brasileira de Letras, tendo sido presidente no ano seguinte.

Carolina foi a mulher ideal para Machado de Assis. Esgotado pelo intenso trabalho de escritor e funcionário público, Machado sofria de epilepsia e a esposa ajudou-lhe não só nas revisões como cuidando dele.

Sempre doente e para aumentar seu sofrimento, em outubro de 1904, morre sua mulher, auxiliar e companheira. Em sua homenagem, Machado escreve o poema "A Carolina".

Em 1908, licenciado das funções públicas, mesmo debilitado, escreveu seu último romance “Memorial de Aires”.

Participou do projeto de criação da Academia Brasileira de Letras, sendo eleito seu presidente em 28 de janeiro de 1897, cargo ocupado por mais de dez anos.

No dia 29 de setembro de 1908, Machado de Assis faleceu na casa 18 da rua Cosme Velho, no Rio de Janeiro, vítima de câncer.
Veja também: Realismo no Brasil
Principais Obras de Machado de Assis

Machado foi um ávido escritor, produziu diversas obras, dentre romances, peças de teatro, poesias, sonetos, contos, crônicas, críticas e traduções:

Obras e Anos de publicaçãoPeças de teatro Desencanto (1861)
Queda que as mulheres têm pelos Tolos (1861)
Quase Ministro (1864)
Os Deuses de Casaca (1866)
Tu, Só Tu, Puro Amor (1881)
Poesias Crisálidas (1864)
Falenas (1870)
Americanas (1875)
Poesias Completas (1901)
Contos Contos Fluminenses (1870)
Histórias da Meia-Noite (1873)
Papéis Avulsos (1882)
O Alienista (1882)
Histórias sem Data (1884)
Páginas Recolhidas (1889)
Várias Histórias (1896)
Relíquias da Casa Velha (1906)
Romances Ressurreição (1872)
A Mão e a Luva (1874)
Helena (1876)
Iaiá Garcia (1878)
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
Quincas Borba (1891)
Dom Casmurro (1899)
Esaú e Jacó (1904)
Memorial de Aires (1908)


Memorial de Aires foi a última obra de Machado de Assis. Publicada no ano da sua morte, trata-se de um romance psicológico autobiográfico, que apresenta características do realismo.

A obra de Machado de Assis teve muitas adaptações para cinema, tv, teatro, ópera, música, dança, literatura e histórias em quadrinhos (HQ).
Veja também: Literatura Brasileira

Livros de Machado de Assis que você não pode deixar de ler
1. Memórias Póstumas de Brás Cubas
Cena do filme "Memórias Póstumas de Brás Cubas"

Obra que inaugura o Realismo no Brasil, é dividida em 160 capítulos. Com ironia, Brás Cubas, o “defunto-autor”, narra a sua vida depois de morto.

O livro é de 1881 e virou filme em 2001, tendo sido considerado o melhor filme no Festival de Gramado.

Saiba mais sobre essa obra emblemática:Resumo e Análise de Memórias Póstumas de Brás Cubas

2. O Alienista
Capa de "O Alienista" adaptado para literatura de Cordel

Obra publicada em 1882, é dividida em 13 capítulos. O Alienista conta a história de Simão Bacamarte, um médico que interna na sua clínica psiquiátrica a maior parte da população da cidade.

Também com a presença da ironia, virou filme em 1970.
Veja também: O Alienista

3. Quincas Borba
Capa da obra "Quincas Borba"

Obra publicada entre 1886 e 1891, é composta de 201 capítulos curtos e narra a história de Rubião, discípulo do filósofo Quincas Borba.

Em 1987, a obra tornou-se em mais um longo-metragem.
Veja também: Quincas Borba

4. Dom Casmurro
Adaptação de "Dom Casmurro" para HQ

Obra publicada em 1899, é apresentada em 148 capítulos. Nela, o leitor conhece a história de amor, cheia de ciúmes, de Bento e Capitu.
Veja também: Dom Casmurro
Características da Obra de Machado de Assis

Há características marcantes nos trabalhos deste grande romancista. Dentre elas, destacamos o fato de muitas vezes o leitor ser convidado a refletir sobre a obra, o que revela a sua complexidade psicológica.

No geral, os personagens são burgueses. Quanto às personagens femininas, são fortes e dominadoras, além de adúlteras e sedutoras. O adultério é um tema comum na criação de Machado.

A criação machadiana apresenta humor e intertextualidade com outras obras.

Estudiosos da literatura afirmam que a obra de Machado pode ser classificada em dois momentos. O primeiro, influenciado por José de Alencar, apresenta características mais românticas, o outro, sob influência de Xavier de Maistre, características mais realistas.Obras da fase romântica: Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874) e Iaiá Garcia (1878).
Obras da fase realista: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Dom Casmurro (1899) e Quincas Borba (1891).

Saiba mais sobre a escola realista:Prosa Realista

Frases de Machado de Assis“Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.”

“Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinho, Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!”
“Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução.”
“Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.”
“Eu gosto de olhos que sorriem, de gestos que se desculpam, de toques que sabem conversar e de silêncios que se declaram.”
“Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento.”
“O capital existe, se forma e sobrevive a custa da sociedade que trabalha e nem sempre é recompensada pelos lucros que gera.”
“O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede. Conheço um que já devorou três gerações da minha família.”
“Das qualidades necessárias ao jogo de xadrez, duas essenciais: vista pronta e paciência beneditina, qualidades preciosas na vida que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas.”
“O esperado nos mantém fortes, firmes e em pé. O inesperado nos torna frágeis e propõe recomeços.”
“Pois o silêncio não tem fisionomia, mas as palavras muitas faces...”
“Há coisas que melhor se dizem calando. As feridas do coração, como as do corpo, deixam cicatrizes. Nossos corpos são nossos jardins, cujos jardineiros são nossas vontades.”
“Descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.”




1-O texto que você leu fala sobre a importância de:
(A)  Deixar em paz quem faz o bem a todos.
(B)  Ter orgulho de saber costurar.
(C)  Ajudar mesmo a quem não merece.
(D)  Desprezar quem é teimoso.

2-O narrador fala de si em:
(A)  "A linha não respondia nada; ia andando."
(B)  "Contei esta história a um professor de melancolia."
 (C)  "Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile (...)?"
 (D)  "Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária."

3-A finalidade do texto é:
(A)   Apresentar a conversa entre uma linha e uma agulha.
(B)   Divulgar um texto de Machado de Assis.
(C)   Informar sobre a vida de uma agulha e de uma linha.
   (D)  Narrar uma história para ensinar uma moral.

4-A frase que expressa uma opinião é:
   (A)    "Deixe-me, senhora."
   (B)    "Mas você é orgulhosa."
   (C)    " Vamos, diga lá."
   (D)    "Você é que cose?"

5-No trecho "E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia plic da agulha no pano.", a expressão sublinhada representa
   (A)    Barulho.
   (B)    Calma.
   (C)    Movimento.
   (D)    Milêncio.

6-No trecho "Que a deixe? Que a deixe, por quê?", os pontos de interrogação têm efeito de:
    (A)   Apresentar.
    (B)   Avisar.
    (C)   Desafiar.
    (D)   Questionar.

7-A agulha da história aprendeu que deve:
   (A)    Desejar tudo porque tudo perderá.
   (B)    Fazer o bem, sem esperar reconhecimento dos outros.
   (C)    Praticar a gratidão, porque será recompensada.
   (D)    Ser gananciosa, para tornar-se vítima da própria ganância.

8-Qual era o motivo da discussão entre a linha e a agulha?

9-Para você quem é realmente responsável pela costura?
a)   A agulha             b) A linha            c) A costureira

10- Quem são os personagens do texto?

11- Qual o tema discutido no texto? Assinale a(s) alternativa(s) correta(s).
( ) O orgulho ( ) A vaidade ( ) A humildade
( ) Egoísmo ( ) Prepotência

12- Quais características a linha e a agulha tinham em comum?
( ) Eram humildes;
( ) Eram orgulhosas;
( ) Eram trabalhadoras;
( ) Eram vaidosas.


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Bjs